por Carolina Nóbrega


projetos são ficções encabeçadas ao ponto de se tornarem verdade. mas a prática, a ação, nunca condiz inteiramente com o projeto, escapa dele, o desvia, o desrespeita, o transforma. ter certeza daquilo que se quer criar - amarrar tudo, garantir lógica, coerência e procedimento, lixar as arestas - é de fato o que é o processo artístico? isso é de fato mais potente do que o acaso? ao acaso, talvez não surgissem modos de ação e linguagem se não mais, tão interessantes quanto? o anseio pela conquista dessa bloco sólido ou poroso entre conceito e prática pode ser ainda mais desgastaste em trabalhos em coletivo, nos quais montantes gigantescos de energia se escoam na busca pelo consenso. porque não, então, deixar entrar o acaso como protagonista a nortear um pouco as escolhas, desconfiando um pouco de nossa hipercoerência artística? talvez dê errado. mas, mais uma vez, por que não? por que não ser ineficiente?

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Por causa de como o cérebro é feito, a natureza nunca parecerá disforme, então porque se preocupar? (Allan Kaprow - como fazer um acontecimento? - 1966)
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No fim do ano passado e início deste, fiz uma viagem para o Para, na qual acompanhei os dois últimos dias de uma festa tradicional de Carimbó. No último dia de festa, acontece o Pelouro, um sorteio dos festeiros do próximo ano. O festeiro é o responsável por preparar um dia inteiro da festa (que dura onze dias e onze noites), incluindo o café da manhã, o jantar, uma bebida de gengibre com cachaça e a decoração do barracão. Ele terá que preparar e bancar tudo com seu dinheiro. E tudo será distribuído a quem comparecer na festa gratuitamente.

No festejo de Carimbo de Santarém Novo, os festeiros não podem receber patrocínio – nem do governo, nem de políticos, nem de comércio, etc. A festa e tudo que é nela ofertado tem que ser uma doação material e energética.

O sorteio foi o sorteio mais ineficiente que já vi na minha vida. Em um pote haviam as datas da festa do ano seguinte mais um monte de papéis em branco e no outro pote os nomes de todas as pessoas da irmandade (que tem mais de duzentas famílias). Eles sorteavam um papel com o nome de uma pessoa num pote e no outro, sorteavam a data ou o papel em branco. Se era branco, a pessoa sorteada não seria festeira, se era com a data, eles viam se a pessoa estava presente, se ela não estivesse, a data voltava para o pote e tudo continuava; se ela estivesse, ela aceitava ou não ser festeira, se aceitasse, a data era fechada e se negasse, a data voltava para o pote e tudo, uma vez mais, continuava. 

Durou muito tempo, horas mesmo, até eles conseguirem fechar os onze dias de festa. No início eu e os outros "estrangeiros" que ali estavam, não entendiam porque o esquema era tão demorado e pensamos em mil outras possibilidades para a coisa se desenrolar mais rapidamente... depois entendemos que a questão não era ser eficiente.

Em primeiro lugar, desse jeito eles acabavam falando o nome de todos os envolvidos na festa, acabava sendo um crédito, um jeito de fazer todos estarem presentes e serem homenageados. Em segundo lugar, era tão improvável que você fosse sorteado, que ser escolhido se apresentava de fato como destino (ser escolhido era intensamente celebrado ao som de gritos e rufos de tambor).

Essa opção por ser ineficiente lembrou-nos (os estrangeiros) de Francis Alÿs, artista belga residente no México, por conta de um dos princípios que norteiam seu trabalho: máximo de esforço, mínimo de resultado. Princípio esse que é uma inversão proposital da lógica de mercado, que nos lembra que não se há de fato um lugar final ideal a ser alcançado (uma compensação) e que a práxis em si mesma é o que constrói a vida (o agora). Alÿs cria seus trabalhos como uma “resposta épica”, ao mesmo tempo fútil e heróica, absurda e urgente.



Em 2002, em “quando a fé move montanhas”, ele convenceu 500 estudantes peruanos a andar em uma linha empurrando com uma pá a areia de uma duna na zona periférica da cidade, para assim, mover a duna em alguns centímetros.



O movimento minúsculo e temporário da duna dramatizou esse princípio de “máximo esforço e mínimo resultado”, que, segundo Alÿs, tipifica muitos esquemas de modernização latino-americanos, assim como são também uma conquista monumental realizada através da co-operação. Para Alÿs, era essencial que os participantes doassem seu tempo e energia para que ação servisse como modelo de oposição a princípios econômicos conservadores de eficiência e produção.



Diante dessa montanha que se moveu e desse pelouro, dessa (des)ordem cultural tecida ao acaso, será talvez possível se vislumbrar outros modos de criação para as artes? 

Uma proposta qualquer a um coletivo qualquer. Um sorteio. Outro. 

Haverão 3 potes, pote A, pote B e pote C. No pote A estarão ao menos 103 pedaços de papel, nos quais em apenas 3 estarão escritos a palavra SIM e nos outros todos a palavra NÃO (esse número pode ser aumentado ou diminuído caso queiram-se sortear mais ou menos coisas). No pote B estarão os papéis nos quais estarão desejos de procedimentos de pesquisa descritos separadamente. Todos os participantes poderão escrever quantos papeis com desejos de pesquisa quiserem. E no pote C estarão os nomes de todas os participantes do coletivo.

Duas pessoas serão sorteadas no pote C. Primeiramente, o mestre de cerimônias, que irá ler todos os resultados do sorteio. Depois, um ajudante que irá sortear os papéis na ordem estabelecida e mostrar para o mestre de cerimônias para que ele leia.

O ajudante irá primeiro sortear uma procedimento no pote B, que o mestre de cerimônias lerá em voz alta; depois sortear um papel no pote A, para que o mestre de cerimônias diga se aquele procedimento não será desenvolvido (se sair NÃO) ou se será desenvolvido (se sair SIM). Se sair NÃO, o ajudante simplesmente enrola os dois papéis juntos, os deixa de fora dos potes e retoma o sorteio. Se sair SIM, o ajudante sorteia um nome no pote C, o mestre de cerimônias lê o nome que foi sorteado em voz alta, a pessoa sorteada então deve se levantar, ir a frente de todos e em 5m explicar (falar-fazendo) no que consiste o procedimento selecionado como se fosse um especialista (mesmo que não tenha idéia do que se trata, ele inventará, ele mentirá). Depois de passados dos 5m a pessoa volta a sentar e o sorteio é reiniciado.

Os procedimentos serão pesquisadas pelo coletivo na mesma ordem que saírem no sorteio.

Dessa maneira, ineficiente, o mestre de cerimônias lerá em voz alta boa parte dos procedimentos escritos pelos integrantes do coletivo. Dessa maneira, ineficiente, o coletivo verá passar todos os procedimentos possíveis virtuais sobre seus olhos e imaginários, como os créditos de uma experiência que nunca se deu. Dessa maneira, ineficiente, todos os participantes se sentirão a vontade para propor os procedimentos que desejarem, sem necessidade de justificar ou convencer ninguém, descobrindo, a partir das reações das pessoas ao ouvirem a descrição do procedimento, interesses ou desinteresses expontâneos do coletivo pela sua proposta anônima. 

Caso hajam mais "NÃOs" do que procedimentos e que termine uma rodada inteira sem ainda terem sido sorteado todos os "SIMs", os procedimentos com "NÃOs" serão colocadas de volta o pote B para uma nova rodada, mas os nãos sorteados não voltam, para acelerar a rodada seguinte.