“Degelo” – 1.o intercâmbio de idéias e ações - 16 Mulheres e ½
Descongelar - 24/05/12
por Monica Lopes
Senti
o corpo descongelando por mais estranho que isto possa parecer ao estar com os
pés em cima de barras de gelo. O frio do
gelo ativava a eletricidade do meu corpo e - apesar do incômodo real - eu
sentia meu corpo mais vivo e receptivo a tudo que estava fora. Um silêncio
profundo se apossou de mim. Sentia os
micro-movimentos do meu corpo em reação a tal eletricidade que me atravessava
na forma de pequenos impulsos – havia um risco ali, risco de queda abrupta, sem
controle, medo do não-controle! Estes impulsos me levavam a um desequilíbrio
constante, uma instabilidade recorrente. O gelo nos meus pés iniciou um
processo de trincar o meu corpo de dentro para fora e, por fim, meu corpo
estava vivo, pleno, presente, real. Trincava uma casca meio carne-meio gelo e
eu me desfazia em meio a cidade - passeio público turístico – marco n.o 01 da
cidade de São Paulo. Era noite, luzes alaranjadas, janelas ao longe acesas,
prédios antigos, pessoas passavam apressadamente no seu trajeto cotidiano.
Formavam-se aos poucos poças d’água que escorriam do gelo e faziam desenhos -
reflexos da cidade - reflexos da experiência que acabara de acontecer ali.
Era um outro tempo. Temporalidade do permanente.
Nós permanecíamos ali e algo se movia dentro de nós. Tudo ficava mais quente e
vivo! Depois veio a chuva pela madrugada...
O gelo e a cidade
- 24/05/12
por Monica Lopes
O
gelo e a cidade: o movimento da cidade me afetava e se misturava com as
infinitas mudanças que aconteciam a cada segundo dentro do meu corpo. Era um
mesmo universo o dentro e o fora em eterno movimento, apesar da aparente
estática do meu corpo em cima de uma barra de gelo. A permanência se fazia no
experienciar estar ali, permanecer e suportar. Suportar a intensidade de vida
que estava contida ali naquele instante - em se propor a vivenciar o risco, o
não conhecido, o fora do lugar.
Olhava
as pessoas na rua apressadas, algumas no ponto de ônibus, outras dentro dos
ônibus que passavam na rua à nossa frente, elas murmuravam coisas que eu não
conseguia distinguir. Neste momento eu já perdera a total noção espacial e
achava que a qualquer momento iria simplesmente cair.
Depois
disso senti que poderia ficar ali por uma eternidade, para o resto da vida. E
não sentia mais medo nenhum. Eu derretia
e descongelava. Estava ali final tarde-quase noite -centro de SP, Pateo do
Colégio - em cima de uma barra de gelo. Eu e mais algumas pessoas enfileiradas
lado a lado. Olhávamos para a rua - esta movimentada mesmo à noite. Estávamos
na parte mais antiga da cidade. Dalí se avista muitos prédios antigos cheios de
histórias, janelas ao longe acesas.
Um
homem fazia entrega, outro voltava do trabalho ainda de uniforme. Homens
vestidos de terno olhavam enquanto passavam apressadamente. Uma moça parou e
tirou uma foto. Um homem fumou. Tinha algo ali de bicho, exótico, de algo fora
do tempo e do lugar. Havia uma
contradição. Olhei pessoas voltando para casa cansadas de mais um dia de
trabalho. Era visível. Ainda iriam pegar ônibus e sacolejar por aí, até
finalmente chegar em casa.
Era
uma sensação muito real olhar a cidade naquele contexto – músculos, circulação
sanguínea, sistema nervoso se ativavam para se adaptar a nova realidade. Percepção do gelo derretendo por baixo,
mudando a forma, instabilidade a cada segundo, nada era estável. Cada
micro-movimento era muito significante.
E
neste descongelar saí vagarosamente – um pé depois o outro – do gelo. Meus pés afundavam em um chão macio, profundo;
eles afundavam mais do que de costume como se o chão afundasse com os pés. O
pisar era uma sensação incrivelmente prazerosa. Meu corpo inteiro não era mais
o mesmo. Derreteu, trincou e só ficou a camada mais interna. E esta camada
estava ali andando agora. As vezes olhava para trás e via as marcas dos meus
pés no gelo e voltava a caminhar.
Depois
veio a chuva na madrugada....
A
chuva chegou por fim e eu sentia dentro de mim ainda a àgua do gelo derretido -
memória do corpo, da pele, imagens de cidade - uma pele em carne viva depois da
casca ter rachado e saído.