20.3.12

dissecação obsessiva

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

por Carolina Nóbrega

Por que dançarmos apenas com os ossos? Com as anatomias vistas em partes? Nossa obsessão anatômica, desejo de encontro de uma verdade, eixo de tranquilidade no qual posso me apoiar... (eu sei, aqui tem os maléolos). É uma potencia realmente... esse prazer de encontro ósseo, um prazer de apoio pro pulo, pra queda, pra sair do cotidiano olhando dentro e fundo, as linhas que apontam espacialidades... conecta o fora, a exatidão do osso. Maluco que o que impulsiona o movimento é exatamente aquilo de extrutura que sobrará quando nenhum movimento mais puder existir - apenas aqueles internos, dos vermes por dentro, da degradação, da vida mineral e vegetal.
Arte, entretetanto, não é ciência... é estranho precisar afirmar isso, sentir esse desejo de afirmar isso, expor isso. Se emprestamos coisas da ciência, precisamos também rejeitá-la, como um ato de comer e regurgitar. As verdades de corpo que estabelecemos não são verdades, são uma técnica, como poderiam haver outras e o raciocínio científico serve de apoio, um alinhamento, como poderiam haver outros.
Acho importante a arte como abridora de portas (de latas)... ou como um espelho ampliador das dores, manias, banalidades, tesões - faz sentido falar do que vive o corpo a partir do cúmulo do científico, mas pensando nisso de forma diálética - o corpo poético impossível de ser científico se debate em torno de se ver com um esternocleidomastóideo.
Quem dança sabe de si como qualquer outro sabe. É um saber com uma profundidade e densidade que podem ser incríveis. Mas também podem ser apenas um locus de poder. Eu conheço o corpo mais do que qualquer um... poderia alguém dizer. Mas existem homens no meio do canavial que vão do chão ao céu e se dobram sobre si mesmos como bonecos de articulação frouxa sem saber nada acerca de sua tíbia, fíbula, rádio, ulna...
Estar a dançar na cidade, urbana e intelectual, a partir de um saber que vem da ciência, da medicina ocidental, é um caminho que nos revela nossa frágil face - assim como o cortador de cana se revela em sua violência e sarcasmo quando dança. Dançar a partir da ciência, ter a dissecação de imagens anatômicas como um alimentador macabro é um espelho de origem que pode se revelar como potência desveladora de sentidos internos profundos, estranhos e esquisitos, diferentes da assepcia da verdade científica... A busca ontológica foge dos deuses e cai no osso.
Nosso mergulho no osso é também uma falta de opção... uma falta de uma verdade mais mítica e menos racionalista que nos revelem sentidos. Nós construímos nossa mitologia a partir dos livros anatômicos... e essa prisão nos liberta porque nos desnuda... e desnuda nosso tosco mundo ocidental... solitário no meio de suas supostas verdades, sonhando ser mais sábio e concreto do que um outro povo que compreende-se como sendo um espírito de pássaro por dentro de uma casca viva social.
Não somos mais sábios. Nem menos. Não sabemos uma verdade superior a qualquer outra. Não sabemos verdade alguma, como qualquer outro povo... não sabemos nada para além das breves imanências que nos assaltam e que a conciência persegue, para evitar que nos fragmentemos demais. Como qualquer um, em qualquer profissão, na dança, nos apoiamos em nossas mitologias... e sabemos que, mesmo partindo delas, para acontecer algo de imanente que de repente aconteça para além do repeteco cotidiano, precisamos explodir um pouco essas mitologias...
Penso, então, que ao invés de donos de uma verdade, nos compreendamos sobretudo como um povo órfão como qualquer outro, que constrói seus mundos e os dança, como uma forma de revelar, doer, sorrir e celebrar sua patética solidão - e exatamente quando está com ela, em coito com ela, também dela um pouco escapa, pois se entrega, se liberta de rejeitá-la.

Laerte.1

Larte.2


Laerte.3