23.10.11

Casa 382

Postado por 16 mulheres e 1/2 |



por Monica Lopes

Havia um tempo expandido, um tempo parado. Havia um abandono, lugar com coisas nos cantos. Havia algo de desconhecido, talvez por ser noite, algo de misterioso. Havia também uma tensão no ar.

Nós que já conhecíamos o lugar, mostramos o espaço, devido a buracos, espaços que estavam para cair, pisos não muito confiáveis para pisar. Nós guiávamos com lanternas e luzes a bateria. Havia novamente um conforto ao ver o espaço ocupado com tantas pessoas conhecidas, mas a tensão continuava.

Resolvi por reconhecer o espaço através de fios, desenhando o espaço e explorando cada detalhe, curva que não havia percebido antes. Com a noite, o espaço se mostrava de maneira diferente. Atravessei os espaços através dos fios e só assim pude reconhecer o corredor como um lugar novamente habitável - lugar antes centro das relações e atividades na comunidade das casinhas.

A minha vontade era de ficar parada, encostada nas paredes. Eu me sentia em outro tempo, havia uma suspensão no ar, uma temporalidade outra.

Ao entrar na casa me via em partes estilhaçadas pelos espelhos, que me figuravam como partes das inumeráveis facetas da minha personalidade. Olhava-me e não me reconhecia e isto era bom. Não me via como um todo uniforme, limpo, claro, unificado e íntegro. Via-me em partes conflitantes querendo se disparar para lugares infinitamente diferentes ao mesmo tempo. E esta era minha sina? Estar sempre dividida em partes heterogêneas que só me atrapalhavam seguir adiante, fluir? Isto me trazia um corpo-conflito, as vezes tortuoso e este se debatia no chão da sala da casa.

Na casa havia outros moradores. Havia uma moça que insistia em colocar galhos na cabeça e que ficava amarrada em meio aos fios do varal das fotos. Esta moça me instigava cada vez mais este corpo-conflito e me trazia impulsos corporais intensos. Ela vivia na cozinha, o lugar mais limpo da casa. Na cozinha ela tinha construído um varal de fotos e memórias. Havia também uma mulher que insistia em procurar incessantemente os buracos da casa e circundá-los marcando-os com carvão. Esta vivia circulando por toda a casa e não parava nunca. Não - minto! - apenas parando na parede em lugar característico em um canto na sala ou quando parava para fazer seus desenhos. A outra moradora vivia no quarto, o cômodo mais sombrio, onde ninguém tinha coragem de entrar, exceto quando ela estivesse dentro do mesmo a habitá-lo. Esta insistia em fazer silhuetas de corpos com pregos, com carvão, com tinta, com velas. Ficava dias inteiros, um dia após o outro, colocando vela por vela, prego por prego. Ela tinha também uma estranha obsessão por terra e ficava horas seguidas a mexer e se envolver na terra que existia no corredor em frente da casa. Eu residia em uma parte da sala, eu e meus inúmeros espelhos trincados. Lá eu ficava muitas horas do dia me olhando ou me quebrando em partes cada vez menores, era uma maneira de me deixar morrer. A outra parte da sala se convencionou um espaço de convivência geral, além de conter o lugar característico, o canto da parede - onde a mulher dos buracos permanecia determinados períodos do dia. Neste mesmo canto da sala a moça das silhuetas deixou os restos dos dois computadores, resultado de um dia de fúria desta moça que os destroçou a marteladas. Este dia foi um dia tenso para todas nós, eu fiquei completamente imóvel, ao ouvir os ruídos da quebra, era como se estivesse sendo quebrada por dentro e a partir deste dia a moça dos galhos criou uma certa fixação de medo pela moça das silhuetas.

A janela em casa era um lugar frequentado por todas, onde se espreguiçavam, se pinduravam, se jogavam, ou apenas se sentavam esperando o dia passar. Eu costumava cantar fados pindurada na janela. Nestas tardes ou noites eu cantarolava e sentia duas vozes me habitando, uma minha, e outra que não reconhecia. Eu gostava de ouvir esta outra voz.

A tensão no espaço era um contínuo. Naquela noite tinhamos convidados e estes passeavam pelo corredor e pelas casas. Eu me instigava com o som das coisas, ruídos, ou com o som do silêncio que teimava em se instaurar e que era doído de se ouvir. Comecei a cantar os fados, como sempre o fazia, e isto transportava imediatamente a tensão que estava fora para dentro de mim. E, por incrível que pareça, o ambiente se tornava mais calmo (do lado de fora de mim, claro!). Surgia um alívio no ar, uma sensação de suspensão do tempo, era um suspiro. Em oposição à minha sensação interna, que instalava rachaduras e emergia algo que me provocava, provocava a ir para o espaço de inúmeras maneiras jamais pensadas anteriormente.

Neste instante os ruídos me atraíam, entrava e saía da casa e ouvia, ouvia tudo. Comecei a saltar e me relacionar com a parede. Acima de mim, havia uma moça com grandes olhos, ela havia pindurado na janela seus olhos por um tempo, e descansava com gestos delicados na janela. Eu olhava o céu agora e via os prédios vizinhos, cheios de luzes, havia um respiro ali. Eu, em cima de uma pedra, respirava e olhava para o céu em pausa. Neste momento, deparei-me com uma mulher com cabeça de saco de papel, ela permanecia imóvel e reconhecia o espaço através de outros olhos. Havia muitas pessoas no corredor. Ao me mover mais um pouco encontrei-me com um homem com cabeça de capacete que se movia através de impulsos e giros e reconheci a moça das siluetas, lá no fundo do corredor, que estava novamente envolvida na terra, com um certo tipo de agitação e com gestualidades repentinas e ininterruptas. Ela havia encontrado uns buracos no corredor, onde continuava bem concentrada e interessada.

Por um impulso, corri novamente para casa, passei pela porta, entrei, a moça dos galhos estava lá obcecada com algo que não sei precisar, não parava de pisar no chão com força, e tinha um olhar enfurecido, determinado - parecia possuída de uma força estranha. Ao me aproximar senti uma necessidade brusca de quebrar os espelhos no chão com a marreta. Havia um alívio e um prazer naquele ato e em ver todos aqueles cacos espelhados pelo chão à minha frente. O som também aliviava algo que não sei explicar, talvez fosse ainda aquela tensão que eu falava desde o início. Eu estive lá, por não sei quanto tempo, na sala, com a moça dos galhos. Havia um conflito, um atrito. Ao ver-me quebrando os espelhos, ela esvaiu-se, derreteu-se, parecia que voltava a si, retornava de um mundo distante. E, voltava com aquele olhar delicado, conhecido e carinhoso. Quando menos esperava, ela começou a puxar meus cabelos, tornei-me bicho. O animal que estava nela transportou-se para mim, tornei-me bicho. Parecia que as coisas estavam mais calmas agora, ouvia murmúrios de conversa lá fora. Segui para fora da casa e encontrei-me com a moradora do quarto. Estava ela lá, na entrada da casa com cabelos no rosto. Aproximei-me, fiz gestos carinhosos e acariciei os seus cabelos. E depois, não sei bem porque comecei a puxar seus cabelos e fazê-la mover através destas puxadas. Ela fugia, eu retornava e fazia carinhos. Parecia-me que o bicho que estava na moça dos galhos - que foi se desfazendo e deixando galhos por todo o varal pindurados - entrou em mim e a inquietação que se figurava nela se estabeleceu dentro de mim.

Era hora de deixar o espaço. Uma coisa era certa: aquele lugar nunca mais seria o mesmo, nem aquelas pessoas que traziam agora consigo traços, rastros do que ficou inscrito naquela noite.



20.10.11

Impressões da Casa da Purpurina

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

Por Andrea Mendonça

CASA DA PURPURINA Nº 382.


O medo de vestir meus galhos e ocupar o espaço das casinhas era real. Ansiedade. Um estado de excitação quase infantil. Os passos apressados e o silêncio eram guiados por uma lanterna minúscula. Quando entrei no ambiente me senti à vontade, como se estivesse retornado a minha casa, onde permaneci durante anos. Incontáveis. Finalmente consegui respirar. Estado de alívio. A repulsa aos animais rastejantes, aos espaços invisíveis e aos cantos escuros haviam desaparecido por alguns instantes.
Apresentava o espaço às pessoas que entravam pela primeira vez, e todos eram muito bem vindos. Ali tínhamos vizinhos. Intimidades. Um sofá rasgado. Casas vazias. E muitas memórias misturadas, de existências desconhecidas, memórias inventadas, as antigas misturadas ás memórias recentes. Memórias eram construídas a cada instante da ocupação. Construídas e destruídas. Construídas e destruídas.
O tempo dilatava-se. Expandido. Fato é que em casa o tempo passa de outra forma, ou melhor, nunca passa. Três horas correspondem a 30 minutos no espaço-tempo-casa-memória. E lá eu poderia permanecer, durante horas infinitas. Paralisada. Percorrendo os espaços entre a minha casa, o corredor e as portas das casas dos vizinhos. Expandindo. Sumindo. Construindo e desconstruindo. Como um corpo-ser forte fragilizado.
O primeiro espaço ocupado foi o corredor. Encostei-me na porta da vizinha de frente, aquela de cachos vermelhos que vivia entre os móveis de miniatura de plástico, e descansava no estrado de uma cama de madeira escura. A porta da minha casa estava aberta, e através dela eu conseguia avistar os espelhos quebrados que estavam pendurados na parede do fundo da sala. Já não me reconhecia. As imagens eram recortadas, desconstruídas e reconstruídas. O corpo enrijecia. Imobilidade. Ali permaneci por algumas durações, e nascia um estado de irritação. Fios presos ao varal me impediam de permanecer ereta. Curvada, os galhos ficavam cada vez mais doloridos e pesados.
Encontrei-me pressa aos fios, o corpo completamente enroscado, torcido. E quanto mais eu tentava me soltava, era pressa, engolida por fios brancos. Os fios da moça que cantava fados e quebrava espelhos com um martelo, ela morava na minha sala. Ao movimentar as extremidades de forma lenta e ágil, consegui me liberar, entrando rapidamente na sala de casa, onde me sentia segura.
Dentro de casa o olhar rastreava o ambiente, fazendo o reconhecimento o mais rápido possível para sentir-se a vontade. Necessidade. Na sala árvores solitárias com as quais eu me identifico de certa maneira, espelhos partidos, objetos queimados, milhões de pregos, um varal de lã vermelha e preta com frases e desenhos de cantos do espaço pendurados, e inúmeros círculos desenhados a mão com carvão demarcando pequenas demolições. Meu corpo encolhido no canto voltava a respirar, e eu ajeitava os galhos do rosto com as pontas dos dedos. Ali estavam presentes duas outras pessoas, dançando entre os fios, uma rainha sorridente vendada, e uma moça de olhos transparentes gigantes. Elas não podiam me ver.
Desloquei-me agachada até a porta de casa, me dando conta de que a coluna havia tomado uma forma absurdamente curva, como um felino quando vai dar o bote para se defender. Recuei quando percebi algo ou alguém no corredor de cócoras, cavando o barro com as unhas longas e afiadas, uma mistura de pessoa com longos cabelos cobrindo o rosto e um bode. Era feroz e podia atacar a qualquer momento, amedrontava-me. Medo da Carolina. Medo de mim mesma. Medo do que pudesse acontecer. Medo de me movimentar. Medo de um estado interno de quase violência. Agressivo e frágil ao mesmo tempo. Contraditório e irreconhecível, como uma criatura meio minotauro meio centauro.
Ao notarem a minha presença, as pessoas felizes sumiram, afinal de contas, eu era um ser desconhecido. Comecei a bater os cascos nas tábuas de madeira da sala, com o intuito de demarcar território e afastar a mulher-bode, punindo-a, me punindo, como quando ela bateu com força as costelas na parede, emitindo um som agudo e cortante. Estado de repetição. Um som estridente ecoava por todo o espaço. Cacos de espelhos espalhados. Agora sim era o momento do enfrentamento. Agachei-me no barro ao seu lado, e penetrei os galhos da minha cabeça em sua cabeça, com força. Ela não podia enxergar, mas quebrou uma parte dos meus galhos. Senti dor. Alguns fiapos caíram dentro dos meus olhos, quando reconheci que se tratava da pessoa que morava no meu quarto, aquele no qual eu nunca entrava sozinha. Na parede tinha um armário com cordas e terra caía das gavetas. Silhuetas de pregos e velas presas às paredes. Lugar sujo e bagunçado. Afastei-me.
No corredor, em frente à porta do vizinho que escondia o rosto atrás de um capacete, havia uma mulher sem face, com cabeça de saco de papel marrom, que caminhava incessantemente de um lado para o outro. Voava ao seu redor, próxima a janela azul, a moça de olhos gigantes transparentes. Eu apenas observava como se fosse um ritual, ao mesmo tempo em que procurava controlar possíveis impulsos de movimentos arriscados.
Na porta de casa, Patrícia, ex-moradora, enforcava-se pendurada na janela, rodeada por inúmeras enforcadas. Talvez filha de Odair, ela tinha apenas 11 anos em 1995, 16 anos atrás, segundo contas, cadernos, diários e outros rastros encontrados por nós, os moradores atuais, nos armários mofados do banheiro. Iniciava-se um fado, cantado pela mulher da minha sala. E então eu fui me aproximando. Parecia que depois das mortes, o ambiente voltava a estabilizar-se. Vizinhos e visitantes em um estado de encantamento observavam a cantoria. Calma. Neblina.
Quase que hipnotizada voltei a entrar na sala de casa, mas possuída imediatamente por uma fúria, quebrava partes dos meus próprios galhos com as mãos, era como que cortar não as unhas, mas as pontinhas dos dedos, rasgando camadas de peles escondidas. Desnudar-se. Pressionei parte no pescoço e ao redor da clavícula esquerda, deixando arranhões. Vidros eram quebrados próximos ao meu rosto pela mulher dos fados, que já não mais cantava. Movimento de rachar o chão com os ossos dos pés. Exausta, me sentei em suas costas, puxando com as mãos seus cabelos, ela havia se transformado em um cavalo manso. Abraçou-me, e meu corpo desfez-se, envolvendo-a carinhosamente numa dança de gestos pequenos e sutis, e o olhar fixo diante das imagens dos poucos espelhos que restaram na parede ao fundo. Reconhecia-me.
Quando inesperadamente, notei parada no batente da porta impedindo a passagem, a criatura bode. Perseguia-me, mas antes que voltasse a atacar, fugi para a cozinha, onde eu realmente morava. Esconderijo. Toca. Na cozinha um balde de ferro, um armário branco com fôrmas de gelos vazias, e pendurado no teto, recordações da minha família. Deite-me ao chão para um longo respiro. Ouvia conversas, cheiros de café fresco e detergente entravam pelas narinas. Estava apegada ao lugar. Apegada aos vizinhos, aqueles que ocupavam o espaço ao meu lado, como àqueles que um dia passaram por lá. Talvez. Tudo seria demolido e eu não conseguia dormir. As saudades e a solidão já estavam presentes. Estado esquisito. Permaneço confusa.




20.10.11

Agradecimento Demolições

Postado por Núcleo Cinematográfico de Dança |


Muito legal o movimento de todos e o que rolou ontem nas casinhas, ficamos comovidas!
Aproveitamos para agradecer e parabenizar o Núcleo de Garagem mais uma vez pela maravilhosa iniciativa, e agradecer imensamente Mônica, Carol, Fabi, e Andréa pela força com essa produção. Agradecer a Cuca por compartilhar esse espaço com todos.  O movimento todo de vocês foi fundamental para a presença do 16 mulheres e 1/2 na ocupação das casinhas...Muito agradecidas também a todos pela disponibilidade ontem lá no espaço, pela entrega, pelas criações efêmeras, enfim...gracias gracias gracias a TODOS!!!!Em breve postaremos o vídeo.

Maristela e Mariana

12.10.11

Demolições

Postado por Núcleo Cinematográfico de Dança |

O 16 mulheres e 1/2 foi convidado pelo Núcleo de Garagem e Cuca dias a participar de uma residência artística em casas que serão demolidas.








A Casa da Purpurina é uma ocupação temporária que está sendo realizada durante este mês de outubro.

São várias iniciativas artísticas movidas em um espaço, uma pequena vila com 7 casinhas, que será demolido na Vila Madalena.

"Por esta brecha nos embricamos e fomos nos reunindo pelo simples desejo de habitar, 
ainda que rápido, 
ainda que sobre a corda bamba, 
ainda que na precariedade. 

No trânsito transitório em meio à ameça do escombro." (Núcleo de Garagem e Cuca Dias)

11.10.11

Controle

Postado por Núcleo Cinematográfico de Dança |

por Mariana Sucupira

Desde o começo do semestre passado, venho tentando trabalhar com um procedimento de acúmulos, adicionando camada sobre camada de cada um dos materiais investigados. A mesma célula vem se transformando a cada encontro, deixando passar alguns fragmentos  - porque não quero, ou me esqueço - somando outros, somando de outros. Agora tenho uma célula "pinball-esfenóide-espaço-câmera-subjetiva-movimentos dos outros-palavras-desenhos-objeto-banco".  A retomada do trabalho com os "objetos faciais", no entanto,  tem sido interessante, porém bastante desafiadora para mim. Se não me encontro mais naquele lugar, para onde ir agora?  O objeto era para mim a representação de uma aceitação, transparência e nào necessidade de controle (veja bem: isso é diferente de descontrole!!). Então pensado nessa coisa do controle/ não controle/ descontrole, me lembrei de um vídeo que vi há pouco tempo e gostaria de compartilhar....Para quebrar um pouco o lirismo que às vezes percorre o blog, ou as pesquisas....Enfim, é sobre o rosto sem controle....

Veja nessa ordem:





7.10.11

Retorno ao Rosto e à Cortázar 2

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

Retorno ao Rosto e à Cortázar 2
ou O Não Reconhecimento


mais um conto, mais um Cortázar, e a sensação de reconhecer-me qual um cronópio.


A foto saiu fora de foco

Um cronópio vai abrir a porta da rua e ao enfiar a mão no bolso para pegar a chave, o que tirá é uma caixa de fósforos; então este cronópio fica muito aflito e começa a pensar que se em vez da chave ele encontra os fósforos, seria terrível que o mundo se houvesse deslocado de repente, e então se os fósforos estão no lugar da chave, pode acontecer que ele ache a carteira de dinheiro cheia de fósforos, e o açucareiro cheio de dinheiro, e o piano cheio de açúcar, e o catálogo do telefone cheio de música, e o armário cheio de assinantes, e a cama cheia de roupas, e as jarras cheias de lençóis, e os bondes cheios de rosas, e os campos cheios de bondes. Assim, o cronópio fica horrívelmente aflito e corre para se olhar no espelho, mas como o espelho está um pouco de lado, o que ele enxerga é o porta-guarda-chuvas do vestíbulo, e suas desconfianças se confirmam e ele desata a soluçar, cai de joelhos e junta suas mãozinhas nem sabe pra quê. Os famas vizinhos acodem para consolá-lo, e também as esperanças, mas passa-se muito tempo antes de que o cronópio saia de seu desespero e aceite uma xícara de chá, que olha e examina muito antes de beber, não vá acontecer que em lugar de uma xícara de chá seja um formigueiro ou um livro de Samuel Smiles.

7.10.11

Retorno ao Rosto e à Cortázar 1

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

Retorno ao Rosto e à Cortazar 1
ou Ainda Bem que Agora Eu Não Tenho Cabeça

Decidi voltar a ler os contos de Histórias de Cronópios e de Famas de Julio Cortázar. Na mesma época em nossos encontros, retornamos ao nosso rosto. Ao nosso objeto-rosto, rosto-coisa. Foi estranho e confuso essa máscara e não, caos, buraco dentro. Cortázar retumbou dentro, certeiro e junto. Caiu como uma luva na mão que nem sei se tenho ou qual a forma... eis...

Acefalia
Julio Cortázar

Cortaram a cabeça de um certo senhor, mas como depois estourou uma greve e não puderam enterrá-lo, esse senhor teve que continuar vivendo sem cabeça e arranjar-se bem ou mal.
Em seguida ele notou que quatro dos cinco sentidos tinham ido embora com a cabeça. Dotado somente de tato, mas cheio de boa vontade, sentou-se num banco da Praça Lavelle e tocava uma por uma as folhas das árvores, tentando destinguí-las e dar os respectivos nomes. Assim, depois de vários dias, pode ter a certeza de que havia juntado em seus joelhos uma folha de eucalipto, uma de plátano, uma de magnólia e uma pedrinha verde.
Quando o senhor percebeu que esta última era uma pedra verde, passou uns dias na maior perplexidade. Pedra era correto e possível, mas não verde. Para experimentar, imaginou que a pedra era vermelha, e no mesmo momento sentiu uma profunda repulsa, uma resistência a essa mentira flagrante de uma pedra vermelha absolutamente falsa, já que a pedra era completamente verde e em forma de disco, muito suave ao tato.
Quando percebeu que além do mais a pedra era suave, o senhor passou algum tempo tomado de grande surpresa. Depois optou pela alegria, o que é sempre preferível, pois se notava que à semelhança de determinados insetos que regeneram suas partes cortadas, era capaz de sentir diversamente. Estimulado pelo fato, abandonou o banco da praça e desceu a rua Libertad até a avenida de Mayo, onde como se sabe proliferam as frituras oriundas dos restaurantes espanhóis. Informado deste detalhe que lhe restituía um novo sentido, o senhor se encaminhou vagamente em direção ao leste ou ao oeste, pois disso não estava certo, e foi infatigável, esperando, de um momento a outro, ouvir alguma coisa, já que o ouvido era a única coisa que lhe faltava. De fato enxergava um céu pálido como o de amanhecer, tocava suas próprias mãos com os dedos úmidos de seu suor, e um gosto de metal e de conhaque na boca. Só lhe faltava ouvir e então ouviu, e foi como uma lembrança, porque o que ouvia era de novo as palavras do capelão do cárcere, palavras de conforto e de esperança, muito bonitas em si, pena que com certo ar de usadas, de ditas muitas vezes, de gastas à força de soar e ressoar.
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Finalizo com essa música de Arnaldo e suspiro, ainda bem que agora eu não tenho cabeça!